quarta-feira, 23 de abril de 2008

SAÚDE REPRODUTIVA DA POPULAÇÃO NEGRA NO BRASIL

Saúde Reprodutiva da População Negra representa um novo campo de produção de estudos e conhecimentos que se encontra em construção no Brasil a partir da confluência de duas áreas de estudos: o campo da saúde reprodutiva e o campo das relações raciais.
Apoiando-nos na perspectiva assumida por Ibáñez (1990) na sua crítica aos "construcionistas a medias", chegaremos à afirmação de que não apenas o conhecimento é construído, mas tanto o sujeito como o objeto, como também os critérios de validez do conhecimento são resultado de um processo de construção. Não existem objetos naturais, nós os fazemos, como eles nos fazem.
Délcio da Fonseca Sobrinho destaca três grandes momentos da história do planejamento familiar no Brasil: o primeiro, anterior a 1964, cujas origens remontam ao período imperial e primórdios do republicano, era marcado por um sentimento natalista difuso e pela idéia racista de busca de melhoria da raça brasileira.
Em relação ao primeiro período destacado por Fonseca, é importante referir o trabalho de Nancy Leyes Stepan acerca do movimento eugênico no Brasil. O importante trabalho desta historiadora vai nos mostrar que as preocupações no campo do que se poderia chamar posteriormente de "planejamento familiar" diziam respeito à composição racial da população brasileira. Segundo Stepan (1990) o Brasil foi o primeiro país latino-americano a ter um movimento eugênico organizado significativo, que modelou a ciência, o pensamento social e as políticas públicas. Entre as duas guerras mundiais, congressos e conferências sobre eugenia foram organizados e a eugenia foi associada a questões políticas muito importantes no país: a legislação social sobre a infância, a saúde materna, a legislação sobre a família, o controle de doenças infecciosas, as leis de imigração e propostas legislativas sobre o controle do estado na regulação do casamento. A eugenia também estimulou cursos sobre genética e debates médico-legais.
Nas duas primeiras décadas do século XX, o movimento eugênico enfatizava a educação, a reforma social e o saneamento como meios para se alcançar o melhoramento da raça e resolver a "questão nacional". Isso era possível, por um lado, porque os eugenistas acreditavam que a ampla miscigenação que ocorria no país levaria a um processo de "branqueamento" da população, como um resultado da natural superioridade dos brancos. Por outro lado, eles baseavam as suas crenças nos pressupostos neo-lamarckistas que consideravam que os caracteres adquiridos podiam ser herdados.
Segundo Fonseca Sobrinho, a linha de pensamento dominante neste primeiro período não resultou numa política natalista clara.
O segundo caracterizou-se pela polêmica do controle versus anticontrole, da qual participaram os militares, que buscavam argumentos de ordem estratégica e de segurança nacional, a Igreja, que alinhava razões de ordem moral e religiosa e as correntes de esquerda, que argumentavam tratar-se de uma manobra imperialista para impedir a libertação do povo brasileiro. Segundo Fonseca Sobrinho, a polêmica entre uma postura natalista e controlista apareceria por volta de 1964 quando os Estados Unidos começaram a advogar que o desenvolvimento brasileiro só se daria com uma redução do crescimento populacional. Tal embate ideológico teria perdurado até que os militares substituíram o inimigo externo pelo interno - representado pelas famílias numerosas que seriam presa fácil da propaganda subversiva, e a Igreja Católica passasse a admitir o planejamento familiar através de métodos naturais. Tais fatos teriam propiciado um maior consenso em torno do direito à saúde, do direito ao acesso às informações e aos métodos contraceptivos, permitindo o surgimento em 1983 do PAISM - Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher. O PAISM, que contou com a participação de representantes de grupos feministas, representou uma superação da dicotomia que identificava toda e qualquer ação de regulação da fecundidade com políticas de controle populacional. O PAISM situou as ações de planejamento familiar no contexto da assistência à saúde da mulher. Ao colocar a mulher no centro da assistência à saúde, as ações de regulação da fecundidade passaram a se constituir em parte integrante do direito à saúde, que veio a ser garantido pela Constituição de 1988.
A expressão saúde reprodutiva popularizou-se a partir do seu uso pela Organização Mundial de Saúde, na busca de um termo que pudesse incorporar as críticas feitas ao antigo conceito de planejamento familiar, incluindo outros problemas e aspectos de saúde ligados à reprodução, não se limitando à contracepção, espaçamento ou limitação da prole. O termo legitimou-se no Programa de Ação da Conferência Internacional de População e Desenvolvimento, no Cairo, em 1994. Paralelamente verificou-se também o desenvolvimento do conceito de direitos reprodutivos, o qual foi impulsionado principalmente pelo movimento feminista internacional. Os termos foram eventualmente utilizados de forma intercambiável, embora este último tenha guardado sempre um sentido mais político que ultrapassa o âmbito da saúde e que se referencia na noção de construção de direitos da cidadania. O conceito de direitos reprodutivos e posteriormente o conceito de direitos sexuais, que passou a ser utilizado a partir das Conferências do Cairo e Beijing, teve um papel fundamental que permitiu a construção dessa nova área.
Por outro lado, as relações raciais no Brasil constituem objeto tradicional de pesquisadores e estudiosos de diferentes orientações teóricas e disciplinas. Tais estudos têm versado principalmente sobre temas relativos ao mercado de trabalho, educação, religião, práticas culturais, destacando-se a história, a antropologia e a sociologia como as disciplinas que têm dedicado mais atenção a este campo. Alguns estudos tradicionais bordejaram o campo que futuramente viria a se constituir: é antigo e recorrente o interesse pelo tema da miscigenação, responsabilizada inicialmente por todos os males que impediam o desenvolvimento do povo brasileiro, raça degenerada de mestiços, ora vistos como estéreis, ora considerados excessivamente férteis. Esta visão negativa da miscigenação teve em Nina Rodrigues um dos seus expoentes, representante do pensamento eugênico no Brasil. A eugenia, formulada por Galton em 1883, era uma espécie de prática avançada de darwinismo social cuja meta era intervir na reprodução das populações.
Tal concepção foi revista e recusada por Gilberto Freyre, que transformou a miscigenação no símbolo mais positivo da civilização dos trópicos, ao mesmo tempo instrumento e resultado da democracia racial brasileira, e prova inconteste da harmonia entre negros e brancos, como se o estabelecimento de relações sexuais implicasse na ausência de violência.
A confluência destas duas áreas tornou-se possível a partir dos estudos demográficos desenvolvidos principalmente pelo NEPO - Núcleo de Estudos de População da UNICAMP - Universidade de Campinas, que na década de 80 publica uma série de pesquisas que vieram a se constituir num marco para o desenvolvimento dos estudos sobre a saúde reprodutiva da população negra no Brasil: são desta época as pesquisas sobre dinâmica demográfica da população negra desenvolvidas pela equipe da demógrafa Dra. Elza Berquó, tendo sido publicados dados sobre nupcialidade, fecundidade e mortalidade infantil, que demonstravam diferenciais significativos entre negros e brancos, ou, com maior precisão, entre mulheres pretas, pardas e brancas.
Estas pesquisas do NEPO apresentaram informações muito interessantes acerca de comportamentos relativos à vida sexual e reprodutiva dos diferentes segmentos de cor da população brasileira no período de 1940 a 1980 que podem ser assim resumidas:
1. Maiores índices de celibato entre mulheres e homens pretos;
2. Níveis inferiores de uniões legalizadas para mulheres pardas e pretas;
3. A mestiçagem mais freqüentemente ocorria entre homens pretos e mulheres brancas do que o contrário.
4. Entre a população preta era mais freqüente mulheres mais velhas do que os maridos.
5. A fecundidade das mulheres pretas era mais baixa nos anos de 40 a 60;

6. A fecundidade das mulheres brancas caiu continuamente desde a década de 40, tornando-se a mais baixa em 1980;

7.As mulheres pardas apresentavam sempre as mais altas taxas de fecundidade.

8.A menor fecundidade das mulheres pretas era relacionada ao maior número de mulheres sem filhos, o que por sua vez era relacionado ao menor número de mulheres pretas unidas e, possivelmente, a piores condições de saúde.

9. As diferenças regionais eram maiores do que as diferenças entre grupos étnicos da mesma unidade da federação

10. A redução da taxa de fecundidade com um maior nível de instrução era mais intensa para as mulheres pretas.

11. Os filhos de mães brancas estavam sujeitos a uma mortalidade infantil 44% menor que os filhos de mães pardas e 33% menor que os filhos de mães pretas em 1960.
Foi sobre este cenário delineado pela demografia que, no final dos anos 80, se inicia a atuação do emergente movimento de mulheres negras brasileiras, que vai ao longo de mais de uma década definindo ou redefinindo diferentes focos temáticos, juntamente com outros atores sociais.
Em 1988 tomou-se conhecimento dos dados acerca do uso de contraceptivos no Brasil, baseados na PNAD, que demonstraram a altíssima prevalência da esterilização feminina no país.
Antevendo a importância que o tema iria adquirir na conjuntura, o Programa de Saúde do Geledés foi lançado em 1991 com um debate sobre A Esterilização de Mulheres no Brasil, e o lançamento simultâneo de dois cadernos: Mulher Negra e Saúde, e Esterilização: Impunidade ou Regulamentação?
A posição política defendida então pelo Programa de Saúde foi alvo de críticas tanto dentro do próprio Geledés, quanto do Movimento Negro e de setores do Movimento Feminista. Enquanto setores do Movimento Negro consideravam a esterilização pura e simplesmente um instrumento do genocídio do povo negro, alguns setores do movimento feminista acentuavam na discussão da esterilização os aspectos da rebeldia e da recusa radical à maternidade. Enquanto setores do Movimento Negro consideravam a esterilização lesão corporal, criminalizada pelo Código Penal, os setores feministas mais radicais consideravam que nenhuma lei deveria regulamentar o corpo da mulher, cabendo somente a ela decidir.
O Programa de Saúde do Geledés recusava a posição política que chegava ao cúmulo de declarações de militantes negros de que era tarefa política das mulheres negras terem filhos; considerava que tal visão não incorporava a discussão do conceito de direitos reprodutivos, prendendo-se unicamente aos resultados demográficos das práticas contraceptivas. Considerava a esterilização um fenômeno complexo, multicausal, que requeria a formulação de políticas públicas, adequação de serviços de saúde, educação das mulheres, campanhas de mídia, etc. Também considerava que nas condições das mulheres negras e pobres, ela expressava, muito mais, a ausência de liberdade, ausência de escolha. Diferentemente dos setores que queriam liberar a esterilização, o Programa de Saúde queria regulamentar para coibir os abusos e estimular outras alternativas contraceptivas.
Este debate político acerca da esterilização, que não foi consensual no interior do movimento de mulheres negras, constitui talvez um debate embrionário acerca das possibilidades do Movimento de Mulheres Negras vir a produzir uma visão própria no campo da saúde reprodutiva, diferenciada das matrizes teóricas e políticas tanto do Movimento Negro quanto do Movimento Feminista, elaborando o que virá a se constituir um feminismo negro no Brasil.
Em 1990 o Conselho Estadual da Condição Feminina resolveu retomar o debate acerca da normatização da esterilização e constituiu uma comissão integrada por representantes de diferentes setores pertinentes à questão. Num trabalho bastante cuidadoso, esta comissão procurou elaborar recomendações claras e precisas que pudessem ser incorporadas a um eventual projeto de normatização.
Em março de 1991 o deputado Eduardo Jorge, tendo tomado conhecimento de um projeto de lei que propunha a legalização da esterilização cirúrgica, propôs a realização de uma mesa redonda para debater a questão na Câmara Federal. Dessa mesa redonda resultou a primeira versão do projeto de lei 209/91 subscrito pelos deputados Eduardo Jorge, Benedita da Silva e outros, que viria a tornar-se na lei de regulamentação do planejamento familiar após seis anos de tramitação no Congresso Nacional. Esta primeira versão baseou-se na proposta da comissão formada pelo Conselho da Condição Feminina de São Paulo, mas já introduzindo algumas modificações, a exemplo da idade mínima para a realização da esterilização, que foi aumentada para 30 anos de idade, enquanto a proposta inicial era de 25 anos .
A apresentação do projeto causou muita polêmica entre diferentes setores e por razões diversas. Setores do Movimento Negro, principalmente no Rio de Janeiro, questionaram a deputada Benedita da Silva, considerando que a esterilização se constituía num instrumento de genocídio do povo negro. Para enfrentar a pressão política sofrida, a deputada Benedita da Silva apresentou em 20 de novembro (Dia Nacional da Consciência Negra) de 1991, juntamente com o senador Eduardo Suplicy, um requerimento propondo a constituição de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, destinada a investigar a incidência de esterilização em massa de mulheres no Brasil. A CPMI foi instalada em abril de 1992 e tinha como um dos seus objetivos averiguar a existência de políticas eugênicas ou racistas e sua implementação na saúde reprodutiva do País. Durante dois meses foram colhidos 27 depoimentos, entre os quais de 6 representantes do movimento de mulheres, sendo três do movimento de mulheres negras .
A representante do CEAP, que havia lançado uma campanha nacional contra a esterilização em massa de mulheres, informou que a campanha interpretava o controle da natalidade como contribuição para o genocídio da população negra no Brasil. Manifestou também a sua concordância com o PAISM - Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher, destacando que o conceito de planejamento familiar dizia respeito ao direito ao acesso livre e gratuito a formas variadas de anticoncepção, mas não só, entendendo que o conceito de planejamento familiar não devia se restringir à saúde da mulher, mas incorporar ações mais complexas, em termos de moradia, creche, escola, etc.
A representante do MNU declarou a existência de discriminação racial nas ações relativas à esterilização de mulheres no País. Como exemplo disso citou o documento do Grupo de Assessoria e Participação (GAP) constituído no governo Maluf com o objetivo de reduzir a população negra no Brasil e as campanhas publicitárias do Centro de Pesquisa e Assistência em Reprodução Humana, dirigido pelo médico Elsimar Coutinho, que utilizava peças publicitárias racistas para ilustrar a necessidade do controle da natalidade. Afirmou que, em um país racista como o Brasil, não existe possibilidade de políticas que se dirijam a grandes contingentes populacionais, sem que essas políticas tenham efeitos diferenciados e desiguais entre brancos e negros.
A representante do Geledés declarou não ser possível abordar a questão do controle de natalidade sem considerar as consequências dessa prática no corpo da mulher, considerando fundamental que a política populacional do país respeitasse o direito humano, básico e fundamental das mulheres determinarem a sua própria vida. Destacou que para se compreender a questão da esterilização em massa de mulheres no Brasil é necessário analisar as relações entre países ricos e pobres, na medida em que do ponto de vista dos países do Hemisfério Norte somos todos negros, cidadãos do Terceiro Mundo, cidadãos de segunda classe.. Enfatizou a importância de políticas mais adequadas, que preservem os direitos de homens e mulheres brasileiros decidirem sobre sua sexualidade e sua saúde reprodutiva.
Os depoimentos das três representantes do Movimento Negro expressam o estado das discussões naquele momento (1992) acerca de uma temática extremamente polêmica. Como se pode notar, os três depoimentos incorporam uma preocupação demográfica com os efeitos da esterilização. Adiciona-se a isso, em graus diversos, a perspectiva dos direitos da mulher.
No processo de preparação para a Conferência Internacional de População e Desenvolvimento, no Cairo, começa a emergir um posicionamento que representa talvez a possibilidade de uma posição política autônoma do Movimento de Mulheres Negras, que ficou expressa na Declaração de Itapecerica da Serra, documento que se constitui num marco do Movimento de Mulheres Negras brasileiras.
Este documento, escrito consensualmente por praticamente todas as forças políticas atuantes no movimento, define as posições deste novo sujeito político em relação a uma série de questões. As mulheres negras brasileiras recusaram a posição patriarcal dos neo-malthusianos que responsabilizam o crescimento da população pela pobreza, a fome e o desequilíbrio ambiental, e identificaram a perversa distribuição de renda e a concentração da terra como os verdadeiros responsáveis pelo quadro de miséria no país. As mulheres negras mantiveram sua posição crítica em relação à esterilização cirúrgica, considerando que os reflexos da esterilização em massa de mulheres negras no país se fizeram sentir na redução percentual da população negra em comparação com a década anterior. Todavia, neste documento fundamental, as mulheres negras declararam também que liberdade reprodutiva é essencial para as etnias discriminadas, reivindicando do Estado as condições necessárias para que possam exercer a sua sexualidade e os seus direitos reprodutivos, controlando a sua própria fecundidade. Além de reivindicar políticas públicas globais de emprego, abastecimento, saúde, saneamento básico, educação e habitação, que consideram como pressuposto para o exercício de direitos amplos de cidadania, as mulheres negras reivindicaram também a implantação do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), bem como a implementação no sistema público de saúde de programas de prevenção e tratamento de doenças de alta incidência na população negra que têm sérias repercussões na saúde reprodutiva, tais como a hipertensão, a anemia falciforme e as miomatoses.
Além das preocupações com a contracepção, a Declaração de Itapecerica focaliza com bastante ênfase a AIDS, as drogas endovenosas e as condições de atendimento ao parto, motivo de preocupação tanto do ponto de vista da mulher, quanto dos prejuízos para a criança. Grande importância também é dada à democratização da informação epidemiológica, com a introdução do quesito cor nos sistemas de informação em saúde, bem como aos recursos necessários para financiar a saúde pública.
À mera queda da fecundidade, que se constitui por vezes em objetivo de governos e organismos internacionais, as mulheres negras brasileiras opuseram o direito pleno à vida e à felicidade não apenas enquanto indivíduos, mas enquanto membros de uma mesma comunidade de destino .
É sintomático que o mais importante documento político elaborado pelo Movimento de Mulheres Negras brasileiras, legitimado por praticamente todas as forças políticas do movimento, tenha sido no campo da saúde e direitos reprodutivos. A importância que esta temática adquiriu no interior do movimento pode ser avaliada analisando-se os temas trabalhados pelos grupos de mulheres negras no país: de 13 grupos pesquisados, apenas um não desenvolvia atividades relacionadas à saúde reprodutiva.
Além do trabalho teórico, político e educativo realizado pela antiga equipe do Programa de Saúde do Geledés, e das pesquisas do NEPO já referidas, deve ser acrescentado a existência do Programa de Saúde Reprodutiva da Mulher Negra, do CEBRAP - Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, responsável pela produção de informações sobre saúde reprodutiva da população negra.
Outros fatores importantes foram a relevância da temática da saúde reprodutiva no movimento feminista, constituindo, assim, um pólo de influência e a existência de fontes de financiamento tanto nacionais quanto internacionais, dentre as quais deve ser destacada a Fundação MacArthur. Além do apoio financeiro a instituições, o Programa de Bolsas individuais da Fundação teve um papel fundamental para a emergência de novas lideranças negras no campo da saúde reprodutiva, funcionando informalmente como um verdadeiro programa de ação afirmativa.
O espaço disponível não nos permite analisar outras iniciativas igualmente importantes para a construção do campo de Saúde Reprodutiva da População Negra. Vamos apenas mencionar a introdução pioneira do quesito cor no sistema de informação municipal em saúde de São Paulo, no governo da prefeita Luisa Erundina, que permitiu a ratificação da importância epidemiológica da hipertensão para as mulheres negras do município e o apoio do Programa Nacional de Controle de DSTs/Aids do Ministério da Saúde a diversos projetos educativos de organizações negras.
Finalmente, podemos considerar que o campo da saúde reprodutiva da população negra legitimou-se no Brasil quando, em 1995, o documento da Marcha Zumbi Contra o Racismo, pela Igualdade e a Vida incorporou no seu programa a implementação efetiva do programa de assistência integral à saúde da mulher e a formulação de um programa de saúde reprodutiva que contemple as necessidades dos homens negros . No campo governamental, a saúde reprodutiva da população negra foi discutida por ocasião da mesa redonda realizada pelo Ministério da Saúde e o Grupo de Trabalho Interministerial sobre Saúde da População Negra, em 1996 , que resultou posteriormente na elaboração do PAF – Programa de Anemia Falciforme, que, com raríssimas exceções, infelizmente ainda permanece no papel.
Navegando entre os velhos espectros de Malthus e Gobineau atualizados pelos novos e assustadores poderes produzidos pelas biotecnologias, ativistas, pesquisadores e profissionais têm diante de si a difícil tarefa de produzir um conhecimento que seja um instrumento de promoção da dignidade, igualdade e eqüidade e não novas formas e instrumentos de discriminação e marginalização da população negra.

Edna Roland (Texto publicado no portalafro.com.br)